Você provavelmente já ouviu falar da história do pato, no mercado corporativo recorremos a esta ave para falar sobre falta de especialização em algo.
Lembramos, o pato faz três coisas: nada, corre e voa!
Mas se colocarmos uma lupa nele, percebemos que ele nada mal com pouquíssima velocidade, anda lento e totalmente desengonçado e voa em apenas curtas distâncias.
Em resumo, não faz absolutamente nada direito.
O Pato no turismo
Eu preciso admitir, não estou há muito tempo no segmento de Turismo, mas há aproximadamente 2 anos tenho mergulhado e estudado bastante o setor, cheguei a compartilhar um pouco destes aprendizados aqui e aqui e recentemente lançamos um estudo sobre travel techs onde mapeamos mais de 90 travel techs tupiniquin, onde pude aprender bastante também sobre outras verticais.
Mas quando adentrei no segmento, o que de longe me chamou mais atenção foi o tanto de pato que existe, ao contrário de outros segmentos, como educação, saúde e tecnologia, que são altamente especializados, o turismo é repleto de generalistas
Veja bem, a grande maioria das agências de viagens vendem viagens a lazer para Disney, passeio em Dubai, sete dias em Porto Seguro, fazem eventos, casamento, receptivo, oferecem fretamentos, e ainda atendem empresas.
A síndrome do pato é comumente vista em mercados menos maduros, vou usar um exemplo meio nerd, mas prometo que vou tentar ser o mais didático possível, lembro que antigamente, lá em 2001, eu fazia website (na verdade, o nome certo era “home page”) usando Dreamweaver, tinha que fazer o design, o html, fazer o script em cgi-perl, subir no servidor, mandar e-mail para os assinantes do meu livro de visitas, acessava relatório de visitas e ainda respondia agradecendo todo mundo que visitava o meu site.
Isto explicava o porquê no início da internet os sites serem tão ruins (o meu era uma piada), 20 anos depois, existem profissionais especialistas só para fazer design, outro para fazer o html (frontend), outro backend (servidor / apis), sysadmin para subir as aplicações no servidor e profissionais dedicados para e-mail marketing, o que antes uma pessoa fazia horizontalmente muito mal, hoje existem pelo menos 8 especialistas fazendo muito bem.
Sim, a evolução natural de todos os mercados é se especializar, e isto incrivelmente gera mais valor na ponta.
Vamos lá, outros exemplos:
Já viu jornalista esportivo comentar economia ou vice-versa?
Médico oftalmologista tratar doenças músculo-esqueléticas ?
Professora de português dar aula de matemática (note que isto funciona bem apenas para fase de alfabetização)?
Sabia que existem 34 tipos de engenharia? elétrica, mecânica, mecatrônica, ambiental, de minas, etc.. etc…
No mercado financeiro, analistas de mercado se especializam por setor, por exemplo, existem analistas que só cobrem o segmento de varejo, outro cobra apenas companhias aéreas, por mais que no final tudo se resuma a uma DRE, a um Balanço Patrimonial e a um fluxo de caixa, existe muitas peculiaridades em cada segmento.
Fez sentido?
Oras, vamos lá, por que raios então você acha que uma agência de viagens pode fazer bem lazer, eventos, transporte urbano, intercâmbio, emissão de vistos e passaportes, tico-tico no fubá, café gourmet, cachorro quente e viagens corporativas?
E vou além, dentro de cada vertical ainda é possível se especializar, e gerar ainda mais valor para seu público, por exemplo, agência de lazer focada para público de terceira idade possui demandas totalmente distintas de uma agência focada em ajudar estudantes a fazerem viagem de final de ano pós formatura.
A importância da especialização
Quando você se especializa, você consegue criar conexões mais fortes com o seu consumidor, entender seus problemas, suas dores, seus desafios e adentra em assuntos e detalhes que generalistas nunca conseguirão entrar, por conseguinte, é possível ser bem mais consultivo, com uma geração de valor absurdamente maior para o cliente, que no final é o que importa.
Novamente, se estamos falando de uma agência especializada em atender terceira idade, além de coisas óbvias como destinos e lugares com facilidade de mobilidade, com mais opções diurnas, é interessante entender forma de pagamento, se o financiamento está sendo feito por crédito consignado em folha, por reserva financeira guardada por anos, ou se é pago pelos filhos e netos, se ele é aposentado ou se trabalha, entender também que vai ser uma viagem muito mais “high touch” em termos de acompanhamento.
Outro exemplo interessante é o corporativo. Aí são outras especificidades! É preciso atender os anseios de gestão e compliance das empresas, entendendo, por exemplo:
- Como as despesas de viagens são contabilizadas?
- Como é feito a auditoria destes gastos?
- Como garantir que a política de viagem está sendo respeitada, e também atender o colaborador da ponta que está viajando?
- Como ele faz prestação de contas das despesas?
- Como ela entra no ERP?
- Quem lança este ‘contas a pagar’?
- O processo é manual ou automatizado?
- Quem são aprovadores dos gastos?
- Qual relatório o CFO precisa?
- Qual relatório o gestor da área precisa?
- Que decisões eles tomam a partir desta informação?
- Existem oportunidades de melhorar este processo?
- Os colaboradores estão felizes com o processo de viagens?
- O turnover da empresa á e alto?
- Será que com uma melhora na política de viagens conseguimos melhorar a satisfação e reduzir o turnover da empresa ?
Veja que ainda nem falamos de hotel, carro e passagem aérea, estamos falando essencialmente até aqui de gestão.
Outro mercado peculiar é o de eventos, qual é o objetivo do evento, para quantas pessoas, qual é público-alvo, o que este público-alvo gosta e o que é possível fazer para atendê-los, quais são os fornecedores? Refeição e alimentação fora ou no local? Logística dos palestrantes? Como vai ser a divulgação? Avaliação e tracking dos congressistas pós-evento?
Enfim…
Sabe qual é a chance de uma empresa fazer bem feito uma viagem para terceira idade, atender o corporativo e organizar um evento?
Zero…
Se sua agência se propõe a fazer tudo isto, me desculpe, mas ela não faz nada direito.
E se você como empresa, fez um evento com uma agência que faz tudo isto, a chance do seu evento ter ficado “meia-boca” é grande, e se você quis presentear seus pais com uma viagem comprada na mesma agência que atende as demandas da sua empresa, a chance da viagem ter ficado “incompleta” é bem grande.
Os especialistas superam os patos
É quase natural, chegar a conclusão que os especialistas superam os patos, afinal, enquanto um está mergulhando nas profundezas do assunto, acordando e dormindo pensando nas dores e desafios do seu público-alvo, o pato dorme e acorda pensando em nada, ou melhor, pensando em tudo, nadando, voando e andando, muito mal.
Uma vez um amigo mentor me explicou com matemática, a importância de se especializar.
Imaginando que um mês tem 30 dias, se você se propõe a fazer uma coisa apenas, se você focar 2 meses diariamente, você terá se dedicado 60 dias para melhorar, aprender e aperfeiçoar isto.
Se você se propõe a fazer 5 coisas diferentes, e dedicar um dia para cada coisa destas, em um intervalo de 60 dias, você terá se dedicado apenas 12 dias para cada “coisa”.
Em 60 dias, quem você acredita que irá estar mais preparado, a empresa ou profissional que se dedicou 60 dias para uma determinada função ou disciplina, ou quem se dedicou apenas 12 dias?
Matematicamente, a empresa que focou está 5x na frente do seu concorrente que faz várias “coisas”, simples assim.
No mercado de turismo, temos alguns exemplos de empresas especializadas que superam os patos.
CI Intercâmbio e Experimento – especialistas em intercâmbio
A CI Intercâmbio e a Experimento estão entre os 5 principais players focados em intercâmbio no Brasil, note, eles só fazem intercâmbio.
Viajanet e Maxmilhas – passagens aéreas
Viajanet já faz mais de R$ 1bilhão/ano (dados públicos divulgados na Panrotas), a Maxmilhas não deve estar muito longe (pré-covid, claro).
Atente, eles só fazem passagens aérea, não fazem seguro, cruzeiro, ou qualquer coisa do tipo, focam em entregar a melhor experiência de compra de aéreo e ter o maior inventário possível.
Hurb e Booking – Pacotes e Hotéis
Seguindo os dados da Panrotas, sobre os maiores distribuidores do turismo, o Hurb aparece em destaque com faturamento de R$ 780milhões, oferecendo apenas pacotes e hotéis.
E o Booking dispensa apresentações, é top of mind de reserva de hotel no mundo (o valor de mercado da Booking Holding, que tem capital aberto nos EUA é de U$ 71bi, possuem também outras marcas como o Kayak no portfólio)
Amex GBT e CWT no Corporativo
Os principais players globais líderes de corporativo no mundo, também só atendem empresas, a Amex GBT e a Carlson Wagonlit Travel estão entre os principais líderes do segmento corporativo no mundo. Outra empresa que acho bem interessante é a Travel CTM, australiana de capital aberto que é focada em corporativo e líder no país.
Startups novas e velhas focam 😉
Uma das coisas que chamaram nossa atenção ao fazer o levantamento de startups foi como eles se propõem a focam em se especializar, a Zarpo por exemplo, focado em hotéis e resorts de luxo e alto luxo para o público A/B, que são chamados de associados. A Instaviagem, propõe entregar viagens com roteiros exclusivos e 100% personalizados, em alta escala, ao contrário do Hurb, que oferece pacotes iguais para milhões de pessoas. A Omnibees que se propõe a resolver os problemas e ineficiência da hotelaria, não fazem absolutamente nada de aéreo, carro ou qualquer outra coisa, mas são extremamente eficientes em atender a cadeia hoteleira.
E claro, a própria Onfly, que faz apenas corporativo para o segmento SMB e Middle Market, empresas que ainda possuem pouca maturidade de gestão, se você quiser viajar com a família, certamente usar a Onfly é uma péssima opção, da mesma forma que usar o Booking para reservar hotéis para os colaboradores da sua empresa é igualmente ruim.
O papel do agente de viagens neste novo cenário
Inevitavelmente, se estamos falando de turismo e empresas de viagens, precisamos comentar também do papel do agente de viagens nesta cadeia.
Incrível como muitas pessoas me perguntam se a função do “agente de viagens” irá acabar, como por exemplo o datilógrafo ou o ascensorista de elevador acabaram, imaginando que eu como uma pessoa que veio de tecnologia acreditasse e defendesse isto.
E eu sempre falo que “não”, que pelo contrário, que eles irão se especializar ainda mais e serem ainda mais relevantes no processo.
Quando estava a frente de uma marca de calçados e decidimos expandir forte no digital, rodamos várias cidades e conversamos com várias vendedoras falando que podiam ficar calmas, que a internet não mataria a loja física e elas não seriam demitidas, mas que agora, era extremamente importante se especializarem, lerem, serem mais consultivas a respeito de calçados e moda, que agora o consumidor já chega munido de informações dentro da loja, e que não colava mais o “sambarilove” do vendedor.
A mesma coisa do agente de viagens, das minhas últimas 30 viagens, apenas 2 usei o serviço de alguma agência, foram coisas mais específicas, que exigia mais conexão e planejamento, e me recordo que nas duas situações busquei agências especializadas, uma em lua de mel, e outra em parques da Disney e da Universal em Orlando (na verdade minha esposa já seguia o perfil de uma agente de viagens brasileira que mora nos EUA e que sabia tudo sobre os parques lá, e ela ficou muito confortável em comprar os ingressos com ela).
Não dá pra forçar a barra, acreditando que o agente de viagens é relevante na venda de um bilhete aéreo de um trecho nacional, ou para a reserva de um simples hotel, o agente de viagens precisa ser cada vez mais especialista, mergulhar nos detalhes, ser muito mais consultivos, pois simplesmente “tirar pedido” não cola mais, …
Meus pais recentemente foram para a Itália e eu fiquei muito seguro sabendo que eles estavam sendo assistidos por uma agência, que entregou roteiro, as conexões, vouchers, deu o whatsapp dele para possíveis dúvidas e explicou grande parte das coisas boas que existem no país.
Observe, meu pai poderia até buscar tudo na internet, mas ele se sentiu mais confortável fazendo isto através de um agente de viagens, que (parece) conhecia bem de Itália e que inclusive foi recomendado por um colega dele.
Isto é se especializar, ser consultivo e estabelecer conexão.
O agente de viagens pato, da mesma forma que a agência, perde espaço também, pois não gera valor algum e é facilmente substituído por duas consultas no Google.
Estamos falando de presente, não de futuro…
Note, não estou falando de pós-covid ou “novo normal”, esta reflexão sairia da mesma forma sem Covid-19, acontece que como compartilhado brilhantemente pela Luiza Trajano da Magazine Luiza, as coisas estão se transformando mais rápida agora, o comércio digital na Magalu avançou 5 anos em 5 dias, segundo ela, e não só o varejo está se transformando, o turismo como um todo também.
Antes da Covid-19 os patos do turismo já andavam meio desengonçado, existiam, tinham espaço, mas estavam em uma inércia onde insistiam em não mudar, acreditavam que a “tradição” por si só era justificativa para se manterem relevantes.
Mas no pós-covid, os consumidores, seja pessoa física ou jurídica, descobriram que não precisam dos patos, podem eles ter 20 anos de “experiência” ou 6 meses, pois descobriram que eles são irrelevantes e não geram nenhum valor.
No pós-covid, definitivamente, não há mais espaço para o “meia-boca”!
Ou você anda bem e corre pra caramba como um Guepardo, voa rápido como águia ou nada liso como um peixe.
Os patos serão extintos!